Pandora

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

conto

PANDORA REVISITADA
(conto)
Noélia Santos



Epígrafe

The only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commonplace thing, but burn, burn, burn, like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars


On the Road,  by Jack Kerouac


        Quando nos dispomos a contar um conto, não existe a ponta por onde seria lógico nos agarrarmos. A ponta do fio azul de Ariadne está, algures, enredada nos labirintos sinuosos da memória, patrulhada por alguma criatura infernal. Ainda assim, tentaremos um pequeno exercício, o mais básico de todos: o de instituir o Verbo. No início era o Verbo, para que tudo ganhasse significado e para que os signos marcassem a chegada da linguagem e do pensamento, ou a chegada do pensamento e da linguagem que, à semelhança da velha questão do Ovo e da Galinha, não se sabe qual dos dois chegou primeiro à meta do ser-se Vivo! É partindo deste pensamento primordial que Pandora, deusa mulher detentora de todos os dons, ousa vaguear e vasculhar entre restos de momentos, procurando aqueles que ainda são capazes de proporcionar-lhe algum consolo, tentando preservá-los da ruína que o tempo lhes impõe. Por isso, abre tantas vezes as portas da sua mente, qual primorosa dona de uma casa milenar, para que as memórias sintam essa atmosfera salutar que lhes devolve a forma. De início, formas difusas, como que saídas da escuridão de uma caverna! De alegorias está feita a ilusão dos mortais, é certo! Mas que vejam a luz do Sol essas memórias, que se pavoneiem, que se lembrem do quanto foram belas ou horrendas. Já dizia o eco vindo da caverna, que do sublime ao grotesco flutua um ténue véu tão ao nosso gosto...
         Memórias amadas, como quem ama gente, pelo que lhe segredam ao ouvido, de dentro para fora. Acredita, a deusa da força, que se não as iluminar um dia lhes perderá o rasto e não saberá como chegou ao que é hoje. Se assim não fizer, ainda que revisitada, perderá o fio e não conseguirá sair nunca deste labirinto que é, antes de mais, caminho de descoberta e de incompreensão sempre certa do que é ser-se Humano! Agarra, pois, o fio azul de Ariadne e segue-lhe a trama.
       De tudo, o que mais a fascina são as manifestações desse estado de procura que se revelam em qualquer tipo de expressão artística, embora arrisque afirmar que essas manifestações também sejam trazidas pela ciência, que tanto diz sobre a vontade de poder inerente a todos os humanos, a benesse concedida por Prometeu: o aproximar do Homem aos Deuses do Olimpo. Pandora, que partilha a responsabilidade com Prometeu da eterna maldição que o Homem viria a sofrer, não tardou a concluir que dentro dos seus crânios de mortais haveria espaço para Deuses e para coisas bem maiores do que eles. Cederam-lhes um pequeno lugar num dos seus lóbulos – ao qual passámos a chamar de Olimpo – e descobriram que teriam de ser eles, humanos, deuses ou semi-deuses, como preferirmos, a procurar as curas para as maleitas do corpo, caso lhe quisessem dar alguma dignidade, pois que a partir dele tudo sentiam, já que a alma se tem vindo a revelar ser simplesmente o fumo da fogueira já apagada, que se desvanece num ápice, e que o Homem é a madeira feita cinza. O segredo está em conseguir que essa tocha, querido Prometeu, arda mais devagar e que o fumo chegue cada vez mais alto e tenha ainda tempo de dançar como que desafiando a sua morte com arremessos de vida. A morte, essa vilã, castradora de vidas em erecção. Ainda está por inventar palavra mais sórdida que abarque, no seu continente, o desprezo que por ela sentem os ávidos, para os que o arrepio causado numa noite de vigília, a ler sob uma luz ténue, significa estar vivo e vulnerável a todos esses doces estímulos! Sem a ideia da morte não haveria razão para querermos agarrar cada instante, não haveríamos de querer trepar, como gatos, as cortinas da noite, no desespero de perder um único beijo, ou um abraço ou o latejar do sexo molhado! Que não se perca nem um único momento sem que o amor se passeie pelas vielas do seu corpo, na anatomia da sua mente, que nunca se cale a voz que se solta e lhe pergunta: acreditas em Deus? Para que ela lhe possa responder, com uma subtileza adolescente, mas convincente: Não! Acredito em mim, que sou eu que me sinto, que sou EU, EU, EU, aqui e agora, EU e não outra pessoa, que à minha volta gira o mundo e o absorvo com toda a minha força centrífuga e destilo tudo, para minha delícia ou amargor. Que vício pela verdade que me esmaga, tanto quanto pelo fardo do teu corpo sobre o meu! Pergunta-me, mais uma vez, só mais uma, descendo outras escadas, desta vez, as escadas que descem do Olimpo, talvez: Acreditas em Zeus? Para que me possa surpreender de novo com a tua audácia e responder-te, acutilante: Não, não! Acredito em ti!
         Uma Pandora revisitada, uma união espontânea que rapidamente deu provas de que, em toda a terra conhecida e por descobrir, não existiria encaixe tão perfeito, como a chave certa que abre a caixa de todas as subtilezas, como a mão que pega na ânfora e derrama a água pelos seus cabelos, num lugar onde, contra tudo o que estava instituído, resolveram enveredar por atalhos tortuosos e torturantes, em florestas por desbravar, tão precoces, crescendo juntos e afastados, espalhando as relíquias das suas descobertas nas traseiras de um penhasco, ou na floresta das árvores altas, entre beijos, palavras e abraços, tão virgens no corpo, mas já tão devassos na mente, sem eira nem beira, sem mestres, sem deuses em quem acreditar, se não nos malditos que recitavam os ditirambos, servos de Diónisos, que lhes traziam a verdade do que há para saber sobre esta espécie que povoa Gaia, desde aquele que desceu do topo da sua árvore para se aventurar na planície, daquele que descobriu que os seus dedos eram ágeis, ou daquele que pintou pela primeira vez o seu corpo ou esculpiu a primeira rocha, ou daquele que descobriu que o calor protege e amacia, que a roda transporta, e que a palavra salta teimosa, de ser para ser, traduzindo-se nos quatro cantos do mundo, quando ainda se achava que o mundo tinha cantos insondáveis e inominados. Quais descobridores de mares nunca antes navegados, éramos nós os pioneiros dos nossos mundos. Os Titãs, os primeiros, os verdadeiros.
        Não sei se será traduzível em palavras o que sentia Pandora, a primeira, quando corria com um rubor de vergonha a latejar na face por carregar um tesouro escondido, que guardaria na sua caixa secreta, aquela que só abria quando estava no conforto do seu habitáculo, tão mundo seu. O primeiro grande tesouro, que ainda hoje conserva, passados milénios, é a base que alicerça o seu ser: um pergaminho e um espelho. Nesses dois objectos estava traduzida e resumida a verdadeira origem do pensamento ocidental e como os humanos deram sentido às suas tristes vidas, tornando-as ainda mais tristes. Mas aos poucos, percebia que a vida é caprichosa e lhe exigia que sentisse o calor de cada vez que se roçava nela, intensa, ardente, quando nos quer derreter e fundir a outro ser, numa guerra constante entre homens e mulheres, homens e homens ou mulheres e mulheres. Não haverá nunca união mais imperfeita.
       Foi assim que, no fulgor da sua adolescência, e na chama de uma mente tão faminta, se lhe revelaram os caminhos de perdição mais apetecíveis, entre o pó e o cheiro dos livros antigos. Ali estava o seu santuário, onde milhares de mentes sábias davam guarida aos seus devaneios filósofos, daqueles a que Sócrates responderia: sem comentários. Aquele era um templo de sabedoria. Era nisso que gostava de acreditar. Ali começou a imaginar o mundo e a desconstruir a superfície à qual todos aprenderam a chamar de realidade. A linguagem foi a única forma que conseguiu encontrar para obter um reflexo da sua imagem e daquilo que desejaria que ela fosse. Sem linguagem seria como se olhasse um espelho e não visse o seu reflexo; seria um não saber que existe como ser pensante. A linguagem é o pilar mais firme que sustenta toda a humanidade, sem a qual todos pereceríamos perante a vertigem do tempo. Mas se deixarmos um pouco a abstracção e voltarmos para o caminho por onde Pandora deambulava, envergonhada, faremos uma pergunta necessária e concreta: o que é um espelho? O senso comum aconselha-nos a responder que é aquela coisa quadrada, redonda, oval, triangular que reflecte a nossa figura. Para Pandora é muito mais do que isso. O espelho é um despertador da consciência do absurdo do ser e, paradoxalmente, do absurdo da morte. Pode ainda ser revelador de profundezas insondáveis dentro da pupila, entrada para o território da alma, se ela existisse como um simples vapor ou fumo, mas, usando metáforas mais recentes, seria um mergulho em águas geladas, seria a intuição do tamanho da parte oculta do icebergue e do quão terrífico pode ser essa revelação. Por isso, o espelho é a pior das religiões para aqueles que lhe sabem a função secreta de revelador, pois não concede espaço a ilusões, nem promete um reino de delícias num além. O espelho de que nos fala Pandora é o que nos aproxima de algo muito mais profundo. Imagine-se, num plano horizontal, o mundo inteiro coberto por um véu semitransparente, ou, caso melhor se preste à nossa imaginação, por uma neblina matinal. Agora, esqueçamos a linguagem, apuremos um olhar de águia e uma sensibilidade térmica de serpente e ser-nos-á revelada a substância da vida. Um borbulhar de matéria orgânica, uma corrente incessante, efervescente, onde tempo e espaço se fundem numa linha contínua. O véu é a linguagem que o homem pôs ao seu próprio serviço para assim suportar o peso de uma realidade demasiado bruta para a sua retina. Mas o espelho pode não passar de um criador de ilusões, tal como se alguém lesse um livro e não lhe visse o âmago. Vejamos também os livros como espelhos, de longe os mais especiais e mágicos. A sensação única de olhar para um deles e sentirmo-nos reflectidos. Esta é a prova de como a linguagem, o tal véu, é necessária à subsistência do ser humano. Uns sabem-no, outros não. Uns navegam sobre as páginas de um livro, outros mergulham nele; uns olham o espelho e apenas vêm a sua aparência, outros vêem-se a si próprios e à humanidade inteira. De tal modo que, depois do longo devaneio, Pandora percorre, mais uma vez, aquelas estantes, embriagada pelo cheiro de livro antigo que a transporta, em vaivéns sugestivos, para o desconhecido. Mesmo sabendo que já rastreou a zona em busca de relíquias, sonda uma vez mais. O seu olhar surpreende um título: INFERNO. Sem nada a que se agarrar, caiu num voo picado.
         Também não sei se é traduzível a sensação de ver o seu ser reflectido em pequenas parcelas, aqui e ali, na cor amarelada daquelas folhas, confundindo-se com a mente de um Strindberg. Esse instante, que começou na visão imediata do título e acabou quando emergiu do mergulho de algumas horas, foi como um partir do conhecido para o desconhecido, num movimento tão autêntico como o movimentar da pena de um poeta. Um gesto que lhe mudaria a vida para sempre e a tornaria prisioneira na ala quase deserta dos sublinhados provocadores.
           É certo que um ser humano no deserto existencial dificilmente consegue sobreviver por um longo período de tempo. Como terá suportado Pandora tal condição? Se ela existiu, eis a questão que deveria ser primordial para quem se embrenha nestas lides. Mas que pormenor! Deixemos que a linguagem nos provoque com os seus jogos subtis, confundindo realidade e fantasia, como numa espécie de sono do qual Pandora acorda mas, na verdade, continua a dormir, fazendo a sua habitual vigília nocturna.
         Expiava os seus pecados, reflectia sobre a realidade e sobre os seus mistérios. A luz que lhe iluminava os pensamentos era um ténue luar que teimava em entrar através das grades ferrugentas que a separavam do exterior. À noite, ela não podia acreditar em vão. Vagueava naquele mundo interno, terno, como num inferno auto-suficiente. Alimentava uma ansiedade, criatura enclausurada em caves de ecos emparedada. Agarrava-se à escuridão e trepava por ela. Esperava um sonho para se evadir. Um cordão fraterno. Um Pégaso num céu vermelho como a ferida que late pelo CO2 que exalas. Com os dedos esborratados de tinta, agarrava na sua pena com vigor e continuava a sua escrita. Escrevia porque entendia que devia perseguir um propósito que nem ela sabia qual era, quando não era esse propósito a persegui-la a ela. Uma inquietação vital dava-lhe asas e água límpida, no reduto espaço da sua cela.
      Deita-se, enfim, depois de muito penar. Mais um pensamento interminável e não adormece. Há um vazio neste espaço de tempo que não saberia descrever nem como narradora omnisciente, que a omnisciência – séculos de reclusão o têm provado – já deu provas de não ser absoluta. Pandora mantém-se acordada, embora nem me saiba dizer se o sonho onde se via imersa acabou de facto.
      Fixou, então, a sua atenção no ruído que vinha do corredor da ala. Ouviam-se passos lentos e arrastados. Ouviam-se passos em direcção à porta da sua cela. Ficava a ouvi-los cada noite até que, por fim, a porta cai e os passos entram. Sem espanto algum, ela profere: – Chegaste, finalmente... a nova vaga! Ficou estática, com o olhar pregado no tecto, suspenso, como um candelabro que pretendesse o paradoxo de ser iluminado. Penso sobre o pensamento. Curativo é o acto de pensar. A cicatriz: a frase ambígua, uma vida ambígua, como todas as estórias vividas no campo semântico de uma História que se diz universal. O penso colado a Pandora impedia que as suas palavras se soltassem como sangue, que se imprimissem no mapa onde se desenham vidas com um fio de tinta azul. Durante o período curativo do penso, a presença da música foi o tão ansiado bálsamo. A cela transformava-se numa catedral de som, onde os ecos rebolavam nas paredes do cérebro ancestral de Pandora. Agora, a pedra deixou de rebolar. Estremece, apenas, ao ritmo da sua respiração.
        Ultrapassada esta prova dissonante, resolve sair para uma ronda, na sua cela. Depois de anos a habitá-la, soube Pandora apetrechá-la de espaços a que hoje chamaríamos de virtuais. Para a criação de espaços virtuais tem ligações suficientes o nosso cérebro, de modo que, quando queria, fazia a sua ronda num deserto. Quanto mais inóspito fosse o local, tanto melhor. Desta vez, caiu numa planície deserta. Um arrepio de alarme e terror percorreram-lhe a espinha, que não há forma mais eficaz para descrever o sentimento de medo. Os companheiros de ala, habituados a segui-la, haviam desaparecido e esquecera-se do caminho de volta. Aos poucos, o desespero atenua-se. Afinal, acabara de se libertar. Num movimento mais brusco, desfez-se das algemas. Depois, dispersou a bruma que lhe toldava a visão. O mundo que a rodeava era o mesmo, isto é, o mesmo deserto, mas a transformação no que viu foi total. Pandora decidiu explorar este oásis mental de forma a encontrar o caminho até ao rio mais próximo, para que, à sua margem, pudesse caminhar até à foz mais próxima. Sem sabê-lo, sem estabelecer tal comparação, ela pensava como o marinheiro destemido que se atreveu a navegar, numa casca de noz, o mais desconhecido dos mares. Quisera ver se o mar caia a pique depois da linha do horizonte. Porque não? Pandora ousou mal avistou o rio, mas não se limitou a caminhar junto da margem, em vez disso, saltou para dentro para se deixar levar pela corrente, avermelhada, como a corrente de um Nilo. Mas assim que a sua pele entrou em contacto com a água, acordou. Voltou. Não estava pronta.
            No parapeito da pequena janela da sua cela, juntara um montinho de terra. Esperou que uma semente ali se aninhasse e crescesse. Acabou por vir uma semente desse deserto e, sem qualquer remorso, parasitou-lhe o ser. A mesma semente impulsionou os malditos das cascas de noz. Pandora fora escolhida também. Era um dos sublinhados provocadores, uma maldita, porém, a encarnação do mais belo dos males. As vozes dos seus predecessores ditavam-lhe, também agora, imersa nesta corrente, o desígnio da sua vida. Não era ambição, nem se quer desejo. Possivelmente, uma necessidade. Absurdo será dizer mas, ainda assim, di-lo-á Pandora: a necessidade de reunir num só ponto toda a história do universo… em mim. A verdade? Perguntas-te. Digo-te: que poderia Pandora saber daquilo que ninguém sabe? A sua certeza era a de não acreditar em tudo o que via e ouvia. Quantas vezes sonhou que subia ao Olimpo e enfrentava os deuses? Ia lá dizer umas quantas verdades a esses senhores que, de dentro da cabeça da humanidade, ditavam a sua superioridade. Pandora mostrou-lhes o quanto são inorgânicos. Por isso, acreditava no mar. Contudo, a ilusão colectiva existe, porque, à noite, o céu e o mar se confundem num brilho dourado.
         Levada pela corrente – porque não haveria Pandora de ser peixe também? – adormeceu e, de súbito – porque não há tempo para delongas num conto – foi atirada para a margem. Deitada na areia ardente, sentiu um cheiro forte a invadir-lhe as narinas e uma náusea desperta-a. Era o vento, outra vez, a trazer-lhe novas da civilização e, como se não bastasse esse mau augúrio, uma acherontia atropos desgastava o último reduto de vida de borboleta ao seu lado. Ainda lhe sentiu o grito subliminar.
      Mitos, crenças, verdades? O sol torra-lhe a mente. De que viverá mais Pandora, do sonho ou da realidade? Difícil será dizer porque nem nós saberemos já distingui-los. Há pouca lógica nos sonhos de Pandora, é verdade. Mas quem adivinharia o amor profundo que nutrias, à espera do sol do meio-dia que queimasse o teu sonho e que das cinzas finais se erguesse uma realização. Pressentiste o cheiro do cadáver que tantos tentam ainda abafar com flores, com acréscimos de carne fresca e velas queimadas. Estava condenada para sempre. O sempre é muito tempo, e o Tempo já é ancião, tem os membros cansados, enfraquecidos, a ranger pela microscópica presença de um mundo povoado. Por que razão anda o Tempo para a frente, rodando ao ritmo de todos os segundos de todos os relógios do mundo? Não admirava a Pandora que estivesse cansado e dilacerado em tais engrenagens! Partilhava com ele a pena. Não podia parar. Parar seria olhar para um abismo sem fim e sentir que este lhe devolve o olhar aterrador. A humanidade, um alarido digno da inspiração de Dante. Mas que importância se atribuiu a si próprio um átomo efusivo, capaz de tal assombro! Tudo pela Omnipotência. Há que tornar-se Deus. Há que deter a engrenagem do Tempo.
       Assustada com tais pensamentos, Pandora desejava dirigir-se para o calor protector de um líquido amniótico, desintegrar-se e dar vida a outras formas, que ao menos a energia não se perde, transforma-se! Chegou mesmo a pensar: e se num acto de egoísmo me entregar ao mar em cinzas, em forma de sonho falido? Pois que mito poderá superar a verdade de que da terra nascemos e nela morreremos? Nem mesmo Pandora, a grácil Pandora, que agora, perdida da margem do rio, caminha novamente no deserto árido, arrastando um cordão umbilical, acesa, viva. Como se isso não bastasse, suportava ainda o peso do mundo, qual Atlas incansável.
     E assim foi durante séculos, até que o curso da história, também ela caprichosa, resolveu indicar-nos um novo rumo. Foi então que o Ovo de Colombo passou a significar a Galinha dos Ovos de Ouro das nações colonizadoras, mas há muito que Pandora dominava a arte da Alquimia. No seu habitáculo aprendeu a destilar, de substâncias pobres, a mais famosa de todas: o dourado. Ela sabia que é o dourado que ilude e incendeia a vontade dos mortais, mas da pedra bruta, maciça, poucos têm notícia, poucos lhe sabem o peso. Poucos, também, guardam para si a fórmula.
         Na sua tábua de trabalho, que tantas vezes arrasou com tentativas falhadas, Pandora procurou o ouro e, como seria de esperar, apenas produzia o dourado. Exercitava-se com vívida vontade para que as emoções brotassem com mais força, quem sabe assim se tornassem sólidas. Mas de tanta força que imprimia, Pandora tudo condensava, tornando-se vaga, sem que o sentido das suas palavras realmente se libertasse. Até que decide acabar com a sua tendência condensadora e, temporariamente, resolve pô-la de lado para deixar a corrente da consciência espalhar-se. Nada mais simples do que deixar-se escorrer, sem medo do processo, sem medo do golpe que o significado lhe poderia provocar. Simplesmente fluir, deixando-se respirar: O2, o significado; CO2, o significante. Quantas vezes ao inalar esse ar de significados se sentia ainda mais humana, pela autêntica necessidade que tinha de significar o mundo! Depois de tanto esforço, Pandora acabaria irremediavelmente por conseguir o contrário do que pretendia: criar o dourado. Acabaria sempre por condensar numa ampola todo o O2 que havia inspirado em si própria, onde a ampola era um invólucro carbonizado, deteriorado pelo tempo, pelo eterno devir.
         Cansada, inspira-se mais uma vez. Quem sabe se é desta. Finalmente cai. O seu corpo embate no chão de uma gruta. Levanta-se, sem um único gemido que expressasse a dor que sentia. Não tinha dúvidas, era aquele o território de Hades, e ali estava Perséfone, imóvel, aterrorizada, à espera de ser resgatada. Pandora acariciou-a, deixando-lhe uma marca de esperança no seu delicado rosto. Sem pronunciar uma palavra e sob uma luz demasiado ténue, Pandora apressa-se para encontrar a saída, mas percebe que está no centro de uma bifurcação. Qual dos caminhos seguir? Onde estará a mina de ouro? Apurou os seus sentidos, dirigiu-se a cada uma das entradas e apenas de uma sentiu uma corrente de ar fresco e não hesitou em seguir por ali. À medida que os seus olhos se viam privados de qualquer referência, caminhou devagar, apurando a sua sensibilidade térmica. A corrente de ar fria, como um fio azul ondulante, era cada vez mais intensa, assim como a sua vontade. Essa vontade fazia-a esquecer-se do perigo que seria encontrar Cérbero. Algo lhe dizia, no entanto, que aquela concentração elevada de O2 simbolizava um território inóspito para criaturas infernais. Seguiu cada vez mais certa dos seus passos, até que avista um foco de luz descendente, percorrendo, verticalmente, velhas raízes. Já sob o túnel de luz, Pandora olha para cima e vê uma abertura, como um círculo que emoldura um céu azul e ramos com folhas verdes a balançar. Trepa pelas raízes, forte. Quando finalmente sai da gruta, segue por um trilho sinuoso. Ao longe, parece ver o vulto de alguém a esconder-se entre a folhagem. Ao aproximar-se, o vento traz-lhe uma voz masculina a cantarolar: Let me see you stripped down to the bone... Nesse momento, acorda. Este sonho inquietara-a. Sentiu uma necessidade urgente de perceber o sentido daquilo. Dirigiu-se à biblioteca para consultar os mestres. Para sua surpresa, a meio do caminho encontra Prometeu, o pensador, sentado numa pedra. Das suas feridas de agrilhoado, apenas restavam as cicatrizes. A sua beleza, que Rodin tão bem soube esculpir, jamais Apolo pôde igualar. Levanta-se, ainda cabisbaixo. Quando resolve levantar o rosto, os seus olhares enlaçam-se, dão as mãos e ele diz-lhe: Obrigado, Pandora! Ela não entende a razão desse agradecimento. Segue-me, diz-lhe num tom dócil, mas decidido. Ela segue-o, por caminhos que não saberia agora descrever, à biblioteca mais próxima. Enquadrados por prateleiras de livros, Prometeu convida-a a segui-lo. Subiram, impacientes, as escadas do cubo. Pouco antes de alcançar o último andar – o Olimpo interdito – a bibliotecária, sisuda e cinzenta, desperta-os daquele estado delicioso de paixão e alerta-os para o facto de estarem num espaço público. Por isso, saem da biblioteca, sentindo um misto de vergonha e malícia. Leva-me à floresta das árvores altas, pede-lhe Pandora. Ele assim fez. Conduziu-a pelo tal trilho sinuoso. Sim, para ali insiste em conduzir-nos a corrente azul. Encontraram um riacho que corria muito devagar. Os sons da natureza ouviam-se nítidos, sem interferências. Descalçaram-se e lavaram os pés da poeira do caminho. Prometeu despe-se e entra na água, convidando-a a fazer o mesmo. Ela hesita. Isto é real. Como poderia mergulhar naquelas águas, sem medo? O seu cabelo cor de mel envolve-a numa carícia que a faz sorrir. Olhou o seu reflexo na água e percebeu que era aquela a sua oportunidade de dar o real sorvo à vida. Despiu-se, insegura, até que descobriu que a brancura da sua pele emitia um brilho dourado em contraste com o verde que a rodeava. Prometeu viu esse brilho, envolveu-a com delicadeza e sussurrou-lhe: Se dos teus sonhos fizeres as escolhas certas, poderás criar realidades fabulosas. Compreendendo o sentido daquelas palavras, Pandora traduziu a sua resposta num beijo que ele gravou no seu pensamento como: Estamos aqui, e agora. Antes de nós, a eternidade, depois de nós, a eternidade. Estamos aqui e agora, ainda, ainda, ainda. Segue-se uma sensação bruta de unidade, de laços inquebrantáveis, de elos surpreendentes, escandalosos. Deixá-los viver, nas vossas mentes, para sempre, esse resquício de tempo que lhes resta, nesse átomo de espaço que ocupam, enquanto os peixes, surrealmente pequenos, nadam à volta das pernas dos deuses que celebram, aguardando as gotas de vida, de esperança.